terça-feira, 14 de outubro de 2008

Progredir na vida

Um otimismo desenfreado caracteriza a Idade Moderna. Para ela a vida, por exemplo, progride, bem como tudo o mais progride - "Progride" significa "tornar-se mais perfeita". E, com efeito: que progresso a ameba fez em sua carreira rumo à formiga e ao homem. E que progresso fez a própria humanidade desde o paleolítico, (no qual comia fígado fresco de mamute), até hoje, (quando come cachorros quentes). Tal otimismo ululante não era sempre o caso. A Idade Média, por exemplo, era somente da morte que se falava. A vida para ela não passava de cursinho preparatório para as provas vestibulares chamadas "morte". "Progredir na vida" significava então "avançar rumo ao eterno descanso". O que não é, afinaI das contas, uma maneira inteiramente enganada de enxergar as coisas.

O ideal seria poder ver o mundo simultaneamente dos dois pontos de vista. Ver, por exemplo, na semente não apenas a futura árvore, com suas folhas, flores e frutos, mas também o húmus que a árvore formará, depois de derrubada. (Os a lenha na lareira.) E ver a vida na sua totalidade não apenas como processo que há vários milhares de milhões de anos adquire formas sempre mais complicadas, mas também como processo que necessariamente terá involução e desaparecerá, como desapareceu em Marte. E simultaneamente enxergar na semente as sementes dos frutos futuros, e na vida como um todo, um processo que se repetiu e se repetirá em inúmeros planetas. Seria ideal, mas difícil.

É difícil, porque quem admite o eterno retorno está ad­mitindo o absurdo de tudo. Para o otimista tudo tem sentido: tornar-se perfeito. Para o medieval, tudo tem sentido: passar para o outro lado. Mas, para quem admite as duas maneiras de ver o mundo, nada tem sentido: é como a pedra que Sisifo carrega para o alto da serra, para vê-la rolar sempre de novo em direção da baixada. Admitir o absurdo é difícil.

E, no entanto, não é impossível. O segredo reside nisto: saber do absurdo e progredir não obstante. Camus, no seu li­vro "O Mito de Sisifo" sugere que Sisifo gosta de carregar pedra. E por quê não seria isto verdade? Não carregamos acaso nós também pedras com muito gosto, das quais sa­bemos, em momentos de honestidade, pelo menos duas coisas: que provavelmente nunca alcançaremos o alto da serra, e que, admitindo embora que o alcançaremos, a nossa pedra não terá grande futuro lá no alto? Sabemos ainda que o alto da serra não é necessariamente um lugar muito mais agradável que a baixada. E não obstante gos­tamos de carregar a pedra. Carregar pedras sempre assim, isto sim seria progredir na vida. Tentemos. Não custa.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" em 07/03/1972.

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