terça-feira, 14 de outubro de 2008

Da indiferença

Temos, enquanto ocidentais, dois e apenas dois modelos para a morte. A morte do Cristo na Cruz, e a morte de Sócrates dialogando. Prova radical que somos, enquanto ocidentais, uma síntese malograda entre judeus e gregos. Malograda, porque, ao imaginarmos a hora da nossa morte, não sabemos como queremos morrer: apaixonadamente ou impassíveis - embora, muito provavelmente, na hora da morte isto não conte.

Imitação de Cristo ou de Sócrates: eis no fundo nossa escolha. Ser santo ou engajado ser filosofo ou contemplativo. Do ponto de vista cristão a escolha socrática é escolha da alienação e do pecado. Do ponto de vista socrático a escolha cristã é escolha da ilusão e do eng­ano. Não há maior pecado do ponto de vista cristão que a "tristeza do coração", isto é, desamor, indiferença. E não há maior engano do ponto de vista socrático que o deter "opiniões", ou seja, afastar-se da sabedoria. Escolhas estas que não podem ser sintetizadas.

Temos exemplos radiantes da indiferença socrática: tanto da indiferença aos movimentos em meu redor, ataraxia, quanto da indiferença aos sofrimentos no meu intimo, apatia. Como, por exemplo, o herói que morre indiferente as dores; o imperador romano que morre em pé, congelado em cubo de gelo; o bruxo medieval que morre calmo e sorri­dente na fogueira; o gentleman inglês que morre fumando cachimbo; o aristocrata francês que se dirige à Guilhotina escolhendo o perfume apropriado; Goethe que morre escrevendo; ou ainda, o hippie atual que morre em reedição do gentleman, "à bout de souffle" acendendo cigarro. O comum a todos os exemplos é a morte, e a vida com dignidade, isto é: esteticamente. Ter vida e morte belas, limpas, não sujas de sangue.

A indiferença elaborou, ao longo da historia do Ocidente, duas grandes ideologias. A estóica na Antiguidade, a classista na Idade Moderna. Dois grandes impérios, o romano e o britânico, elevaram a indiferença em ideal oficial e predominante. O ideal do gentleman inglês - aquele que carrega o fardo do "homem branco" - pode ser resumido nesta famosa sentença: ter consciência e camisa limpa. Nada é capaz perturbá-lo e, portanto, nada pode sujá-lo. É "impecável".

O grande confronto entre as duas maneiras de vida ocidental, entre amor e indiferença, se dá no confronto entre Cristo e Pilatos. Um, cujo rosto está sujo da saliva de seus inimigos, de suor e de sangue. O outro, que lava as mãos em bacia elegantemente servida por escravos. Tal encontro pré-figura a historia toda do Ocidente. Na atualidade, por exemplo: confronto entre engajado e tecnocrata.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 01/03/1972

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