terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dos netos

Há famosa sentença que afirma: de todos os animais ferozes o mais feroz é o neto. A ilustração do significado de tal sentença é outra, igualmente famosa: plantamos árvores para nossos netos colherem frutos. No fundo, a ferocidade do neto é o problema fundamental da futurologia. Querer prever um futuro presenciado apenas pelos nossos netos. Dirigir os esforços da nossa vida em direção dos netos, os quais, por sua vez, viverão em função dos seus respectivos netos, e assim em cada ininterrupta até o fim dos dias. Viver sempre visando um futuro o qual não presenciaremos. Este o clima vital do progressismo.

É verdade: o neto nos devora. Mas duas coisas são igualmente fatos, estaremos presentes no futuro graças aos netos. O primeiro fato, quando considerado, causa curiosa vertigem, o nosso próprio futuro é imprevisível. Não podemos saber onde estaremos na tarde da Segunda-feira de 1974. Nem se haverá guerra mundial na década do 80. Tudo isto é imprevisível, porque depende de inúmeros fatores imponderáveis. O futuro dos nossos netos é muito mais previsível. Sabemos aproximadamente qual será a população mundial e a renda nacional de Ghana em 2020. É mais previsível, porque os fatores imponderáveis passam a ser desprezíveis no longo prazo. Por exemplo: em 1910 ninguém poderia prever na Rússia as duas Guerras, a Revolução, a automação e a morte do stalinismo. Mas tais fatores então imponderáveis são atualmente desprezíveis. Se prolongarmos a curva da produção russa de 1900 até 1910, para alcançar 1970, chegaremos aproximadamente ao ponto alcançado pela realidade.

A vertigem se intensifica ao verificarmos que, a partir de certo ponto, embora a previsibilidade se torne sempre mais exata, se torna isenta de todo interesse, e passa a ser obvia perda de tempo. Por exemplo, querer calcular a população mundial em 3478. O fato parece ser este: quanto menos previsível o futuro, tanto mais interessante. Previsibilidade e interesse são inversamente proporcionados.

O segundo fato, o de sermos, nós também, netos, ameaçada mergulhar o problema do neto em clima de desespero. Goethe exclama: ""ai de ti, que és neto!"". Porque aí verificamos que não devoramos os nossos avós, já que somos incapazes de dirigi-los. Somos condenados a carregar seus cadáveres constantemente em nossas costas. Eles se recusam a morrer nas coisas que nos cercam, no nosso inconsciente, e quiçá no nosso sangue. Prova que o movimento antropofágico dos anos 20 é utopia: carne humana, especialmente se for dos avós, é indigesta.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 23/02/1972

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