terça-feira, 14 de outubro de 2008

Das mulheres

Só se pode falar nas mulheres do ponto de vista mas­culino. Inclusive, quando se é mulher, bem entendido. Porque a nossa cultura não admite outro ponto de vista. É uma cultura masculina, e resultado de realização milenar de um projeto masculino, o ponto de vista feminino, se é que jamais conseguiu articular-se conscientemente, foi, há muito, completamente sufocado pela cultura. De maneira tal que quando as mulheres se querem libertar, visam necessariamente os direitos dos homens.

Como se deu isto? Este terrível empobrecimento pelo qual perdemos o ponto de vista feminino? Pergunta de difícil resposta, já que a perda deve ter acontecido no paleolítico, época imemorável. A única forma como podemos imaginar uma resposta é esta: em um momento remoto da história da humanidade, os homens violentaram as mulheres tão ra­dicalmente, que estas perderam a noção da sua identidade. E em conseqüência os homens perderam a possibilidade de verem-­se, a si próprios, de fora. O fato, embora triste, é por enquanto imutável. Nenhuma quantidade de sutiêns jogados fora por feministas pode mudá-lo.

Podemos, é claro, interpretar o fato, na tentativa de compreendê-lo. Assim, por exemplo, no paleolítico os homens eram caçadores de mamutes e renas, e as mulheres colecionadoras de ovos e raízes. A divisão do trabalho era conseqüência da diversidade anatômica de ambos. Os homens tinham, portanto, vida masculina, com ciência masculina, (conhecimentos objetivos de renas), e ideologia masculina, (adoração do Sol e das Estrelas que guiavam seus passos durante a caça na estepe). E as mulheres vida feminina, com ciência feminina, (conhecimentos objetivos das raízes), e ideologia feminina, (adoração da Terra que fornece raízes).

Mais tarde, em revolução enorme, mas esquecida, os homens passaram a ser pastores. Pastor: colecionador de animais outrora caçados. As renas viraram cabras. Mas mais importante ainda; o homem, embora de certa forma ainda caçador, virou também colecionador, como o foi a mulher outrora. Assimilou a ciência feminina. E a tendo assimilado, subjugou as mulheres. Simultaneamente, impôs sobre as mulheres sua própria ideologia. A adoração da Terra passou a ser menosprezada, (inferiorizada e infernalizada), e a adoração do Céu oficializou-se. Eis como talvez surgiu o patriarcado. Inexorável.

A mulher vive doravante na ciência e na ideologia masculinas. Não pode ser mulher "para si", não saberia como. Apenas pode ser, deste ponto em diante, mulher para o homem. Mas o homem pode efeminar-se. Virar consumidor passivo, (visão masculina da feminilidade). Fim do macho.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 18/02/1974

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