A palavra "fome" adquiriu, ultimamente, uma extraordinária capacidade magnética. Ela é capaz de atrair palavras de todos os tipos, e as atrai para ambos os seus pólos. Surgem assim, no pólo esquerdo, formações como "Geografia da Fome" e "Filosofia da Fome", e, no pólo direito, "Fome de Geografia" e "Fome de Filosofia". A palavra "gula", embora parente próxima da palavra "fome", não é tão adesiva. Não obstante, formações como "geografia da gula" ou "gula de filosofia" não deixam de ter seu interesse. O propósito deste artigo é duplo: tentar distinguir entre "fome" e "gula", e apreciar a "gula" como parceira da "fome".
A distinção entre fome e gula é característica do Ocidente. O Oriente a ignora. As religiões orientais, e mais especialmente o budismo procuram matar a fome num sentido alheio ao Ocidente. Nós matamos a fome comendo. Os sábios orientais ensinam que comer significa alimentar a fome, não matá-la. Quanto mais comemos, tanto mais famintos somos. A fome é um desejo, e desejos crescem quando satisfeitos. Os sábios orientais recomendam, portanto, matar a fome jejuando. A fome (ou a sede, como preferem dizer as sagradas escrituras pali), é uma ilusão a ser superada. Este é, com efeito, o problema central da especulação e da práxis ascética do Oriente. Para nós ocidentais trata-se de um problema mal posto, já que confunde fome com gula. Admitimos a validade do argumento oriental, se este for dirigido contra a gula, mas discordamos, se este se dirigir contra a fome. Para nós a fome não é ilusória (ou "pecaminosa" , como preferimos dizer), mas é, muito pelo contrário, um dos próprios fundamentos da "realidade humana". O homem é, para nós, um animal faminto e a fome é parte da sua condição. O marxismo tende até a considerar a fome como fundamento da história por excelência. Para ele a humanidade avança pelo estômago (embora a imagem poética não seja de uma beleza deslumbrante). Entretanto, é preciso admitir que o argumento oriental, por mais confuso que nos pareça, é inquietante. A distinção entre fome e gula, entre realidade e ilusão, entre o "natural" e o "pecaminoso", não é fácil. Onde acaba a fome e começa a gula? A diferença entre ambas é qualitativa ou quantitativa? O problema não é teórico, mas assume um caráter de urgência prática imediata no estágio atual do desenvolvimento da tecnologia. Estamos vivendo, como indivíduos e como sociedade, o momento da transição da "economia da fome" para a "economia da gula". Ainda existem sociedades famintas, como a brasileira, mas já existem sociedades gulosas, como a da Europa Ocidental. A famosa palavra "subdesenvolvimento" adquire significado neste contexto. O que está subdesenvolvido? A gula. (De passagem seja dito que a palavra "subdesenvolvimento" é monstruosa, já que contem três prefixos que se contradizem mutuamente: "sub", "des" e "em").
Consideremos a fome em seu estado puro e não adulterado: a fome animalesca. É um espetáculo empolgante. Vista em casos individuais, por exemplo, um cachorro faminto vasculhando uma lata de lixo, não é a fome excepcionalmente inspiradora sob um ponto de vista estético. Mas vista globalmente, como força que rege o enorme protoplasma que envolve o globo terrestre e a qual chamamos de "vida" , adquire a fome aspectos majestosos. O reino vegetal, animal e protozoário é uma engrenagem perfeita da fome. Cada espécie serve de alimento e devora outra. A cada espécie corresponde um lugar fixo (uma "niche", como dizem os biólogos), dentro da hierarquia da fome. Todo gatinho tem seu ratinho, o que podemos chamar, se quisermos, de "providência divina". E todo ratinho tem seu gatinho, o que podemos chamar, se quisermos, de "providência diabólica". A toda noz corresponde um dente a quebrá-la, a toda carne uma garra a rasgá-la, a todo sangue uma tromba a sugá-lo, a todo nervo um vírus a destruí-lo. A organização da fome é perfeita. É perfeita, porque não é gulosa. O beija-flor, objeto agradável das nossas contemplações inocentes, não beija as flores; devora vinte vezes seu peso por dia, mas limita-se a esta quantidade respeitável. Não é guloso. A gula entra em cena somente quanto subimos a escada do reino animal e aparece, pela primeira vez e de forma atenuada, quando alcançamos os primatas. Se observarmos um chimpanzé fumando um cigarro, deparamos com a fisionomia da gula, com uma gula não reprimida e não sublimada, uma gula psicanaliticamente sadia. Portanto, a expressão gulosa no rosto do chimpanzé é uma experiência inesquecível. É a expressão da sociedade tecnológica que não permite disfarces.
O homem, como ser faminto, participa do reino animal. Como ser guloso supera a sua condição animalesca. A sua gula assume proporções deveras titânicas. Devora tudo. Devora a superfície e as entranhas da terra. Devora, psicologicamente, as suas próprias entranhas. Devora, hegelianamente, o seu próprio passado. Devora, pela ciência, o seu próprio futuro. Devora, pelo espírito, não somente tudo o que é, mas ainda tudo que é possível. A sua gula é insaciável. Quanto mais devora, tanto mais e mais depressa precisa devorar. Esse devorar insaciável e geometricamente acelerado é chamado de "progresso". Consideremos a fisiologia da gula. O homem devora, por exemplo, a natureza. Primeiro põe a natureza na boca: apreende a natureza. Depois, engole a natureza: compreende a natureza. Pouco mais tarde, digere a natureza: subjuga a natureza. E, finalmente, expele os detritos da natureza apreendida, compreendida e subjugada: evacua instrumentos. É neste sentido, um tanto repulsivo, que podemos afirmar que o progresso da civilização humaniza a natureza. A gula humana transforma a natureza progressivamente no excremento chamado "parque industrial". Mas a gula não pára neste ponto. Volta-se contra o próprio parque industrial para devorá-lo. O processo é demasiadamente conhecido e demasiadamente nojento para necessitar de uma análise neste artigo.
Não é somente a natureza que a gula humana devora. Devora ainda, por exemplo, a sociedade humana. Apreende-a, compreende-a, subjuga-a e a evacua em forma de instituições. Outro exemplo, mais horrível, é a gula humana devorando a alma humana. Apreende-a, compreende-a, subjuga-a e a evacua em forma de testes de Rorschach e IQ. Os exemplos podem ser multiplicados "ad nauseam". São, felizmente, desnecessários para o propósito deste artigo. A fisiologia da gula já se tornou, espero, evidente. A gula humana devora primeiro aquilo que lhe é dado, e depois, insaciável, aquilo que evacuou. A gula é um pecado. É uma perversão da fome. Como distinguir, portanto, entre fome e gula? Sugiro a seguinte distinção: a fome é um princípio (ou um dos princípios) pelo qual o homem se integra na engrenagem da vida. A gula é a perversão desse princípio, porque perverte o sentido da fome. Em vez de integrar o homem na engrenagem da vida, aliena o homem da vida. A diferença entre fome e gula é uma diferença de direção, de sentido, de significado. Tendo definido a gula desta maneira, estamos tentando, "prima face", a identificá-la com civilização "tout court". Mas essa identificação seria um erro. Ela se justifica somente no caso da nossa civilização ocidental. Existem (ou existiam) civilizações diametralmente opostas à gula, por exemplo, a chinesa e a indiana. Não estou dando essas civilizações como exemplos a seguir, mas como exemplos de alternativas existentes, embora talvez superadas. A gula não é a única maneira do homem realizar-se como homem, nem é a única maneira do homem superar a engrenagem da vida.
Mas porque deveríamos considerar uma alternativa à nossa gula? Não podemos contentar-nos com ela, não podemos glorificá-la, como fazem todos os progressistas "liberais" e "socialistas"? A resposta é simples: não podemos contentar-nos com a gula, não somente em virtude de razões éticas (sendo a gula um pecado) e razões estéticas (sendo a gula repulsiva). Estas razões podem ser consideradas produto de uma "pruderie" superada. Não podemos contentar-nos com a gula porque ela nos conduz à destruição de nós mesmos. Esta razão nos impele rumo a uma "filosofia da gula". Ei-la em esboço:
A gula é uma fome pervertida. Ela afasta o homem da engrenagem da vida, esvazia a sua "niche" dentro da hierarquia da vida. O homem não serve mais de alimento ao urso, ao lobo ou ao leão das cavernas, nem servirá, dentro em breve, de alimento aos protozoários e ao vírus. Mas a hierarquia da vida se vinga. Cria novas "niches" e reintegra, sub-repticiamente, o homem em sua engrenagem. Doravante o homem servirá de alimento aos seus próprios excrementos. Ele será devorado por seus instrumentos, suas instituições, suas doutrinas e seus testes. Os dentes, as garras e as trombas desses monstros já estão se aprontando para triturá-lo, rasgá-lo e sugá-lo. Os monstros já erguem as suas cabeças nos países "desenvolvidos". O fim da fome humana (que ainda persiste nos países "subdesenvolvidos") é o começo da fome dos monstros. Com efeito, a gula é uma ilusão, e os sábios orientais tinham razão ao afirmá-lo. A superação da engrenagem da vida pela gula é ilusória. O homem continua integrado na economia da realidade, uma economia "de todo diferente" da sua. É a economia da justiça poética (para não dizer justiça divina). A sua "niche" está fixada. Devora tudo "abaixo" dele, e é devorado por tudo "acima" dele, como qualquer outro animal da terra. A gula faz com que "tudo debaixo dele" seja equivalente a "tudo conhecível". Mas a gula faz também com que "tudo acima dele" inclua os seus próprios instrumentos. A gula não adianta. Não é uma maneira autêntica de superar a engrenagem da vida. Esta é a razão porque devemos procurar outra alternativa.
Urge, portanto, uma "filosofia da gula". Urge uma apreciação ética, estética e principalmente existencial da gula. Urge um reexame da angústia e do nojo existencial, estes característicos da nossa época, sob o signo da gula. A própria consideração superficial da gula, tal como foi ensaiada neste artigo, já facilita, como espero, a provocação de um novo estado de ânimo: um estado de admiração ante a implacável economia "de todo diferente" da nossa, e um estado de prontidão para uma modificação radical do nosso conceito "homem". Um estado de ânimo que pode ser descrito pelo termo "humildade".
Nenhum comentário:
Postar um comentário