terça-feira, 14 de outubro de 2008

Da gula

A palavra "fome" adquiriu, ultimamente, uma extraordinária capacidade magnética. Ela é capaz de atrair palavras de todos os tipos, e as atrai para ambos os seus pólos. Surgem assim, no pólo esquerdo, formações como "Geografia da Fome" e "Filosofia da Fome", e, no pólo direito, "Fome de Geografia" e "Fome de Filosofia". A palavra "gula", embora parente próxima da palavra "fome", não é tão adesiva. Não obstante, formações como "geografia da gula" ou "gula de filosofia" não deixam de ter seu interesse. O propósito deste artigo é duplo: tentar distinguir entre "fome" e "gula", e apreciar a "gula" como parceira da "fome".

A distinção entre fome e gula é característica do Ocidente. O Oriente a ignora. As religiões orientais, e mais especialmente o budismo procuram matar a fome num sentido alheio ao Ocidente. Nós matamos a fome comendo. Os sábios orientais ensinam que comer significa alimentar a fome, não matá-la. Quanto mais comemos, tanto mais famintos somos. A fome é um desejo, e desejos crescem quando satisfeitos. Os sábios orientais recomendam, portanto, matar a fome jejuando. A fome (ou a sede, como preferem dizer as sagradas escrituras pali), é uma ilusão a ser superada. Este é, com efeito, o problema central da especulação e da práxis ascética do Oriente. Para nós ocidentais trata-se de um problema mal posto, já que confunde fome com gula. Admitimos a validade do argumento oriental, se este for dirigido contra a gula, mas discordamos, se este se dirigir contra a fome. Para nós a fome não é ilusória (ou "pecaminosa" , como preferimos dizer), mas é, muito pelo contrário, um dos próprios fundamentos da "realidade humana". O homem é, para nós, um animal faminto e a fome é parte da sua condição. O marxismo tende até a considerar a fome como fundamento da história por excelência. Para ele a humanidade avança pelo estômago (embora a imagem poética não seja de uma beleza deslumbrante). Entretanto, é preciso admitir que o argumento oriental, por mais confuso que nos pareça, é inquietante. A distinção entre fome e gula, entre realidade e ilusão, entre o "natural" e o "pecaminoso", não é fácil. Onde acaba a fome e começa a gula? A diferença entre ambas é qualitativa ou quantitativa? O problema não é teórico, mas assume um caráter de urgência prática imediata no estágio atual do desenvolvimento da tecnologia. Estamos vivendo, como indivíduos e como sociedade, o momento da transição da "economia da fome" para a "economia da gula". Ainda existem sociedades famintas, como a brasileira, mas já existem sociedades gulosas, como a da Europa Ocidental. A famosa palavra "subdesenvolvimento" adquire significado neste contexto. O que está subdesenvolvido? A gula. (De passagem seja dito que a palavra "subdesenvolvimento" é monstruosa, já que contem três prefixos que se contradizem mutuamente: "sub", "des" e "em").

Consideremos a fome em seu estado puro e não adulterado: a fome animalesca. É um espetáculo empolgante. Vista em casos individuais, por exemplo, um cachorro faminto vasculhando uma lata de lixo, não é a fome excepcionalmente inspiradora sob um ponto de vista estético. Mas vista globalmente, como força que rege o enorme protoplasma que envolve o globo terrestre e a qual chamamos de "vida" , adquire a fome aspectos majestosos. O reino vegetal, animal e protozoário é uma engrenagem perfeita da fome. Cada espécie serve de alimento e devora outra. A cada espécie corresponde um lugar fixo (uma "niche", como dizem os biólogos), dentro da hierarquia da fome. Todo gatinho tem seu ratinho, o que podemos chamar, se quisermos, de "providência divina". E todo ratinho tem seu gatinho, o que podemos chamar, se quisermos, de "providência diabólica". A toda noz corresponde um dente a quebrá-la, a toda carne uma garra a rasgá-la, a todo sangue uma tromba a sugá-lo, a todo nervo um vírus a destruí-lo. A organização da fome é perfeita. É perfeita, porque não é gulosa. O beija-flor, objeto agradável das nossas contemplações inocentes, não beija as flores; devora vinte vezes seu peso por dia, mas limita-se a esta quantidade respeitável. Não é guloso. A gula entra em cena somente quanto subimos a escada do reino animal e aparece, pela primeira vez e de forma atenuada, quando alcançamos os primatas. Se observarmos um chimpanzé fumando um cigarro, deparamos com a fisionomia da gula, com uma gula não reprimida e não sublimada, uma gula psicanaliticamente sadia. Portanto, a expressão gulosa no rosto do chimpanzé é uma experiência inesquecível. É a expressão da sociedade tecnológica que não permite disfarces.

O homem, como ser faminto, participa do reino animal. Como ser guloso supera a sua condição animalesca. A sua gula assume proporções deveras titânicas. Devora tudo. Devora a superfície e as entranhas da terra. Devora, psicologicamente, as suas próprias entranhas. Devora, hegelianamente, o seu próprio passado. Devora, pela ciência, o seu próprio futuro. Devora, pelo espírito, não somente tudo o que é, mas ainda tudo que é possível. A sua gula é insaciável. Quanto mais devora, tanto mais e mais depressa precisa devorar. Esse devorar insaciável e geometricamente acelerado é chamado de "progresso". Consideremos a fisiologia da gula. O homem devora, por exemplo, a natureza. Primeiro põe a natureza na boca: apreende a natureza. Depois, engole a natureza: compreende a natureza. Pouco mais tarde, digere a natureza: subjuga a natureza. E, finalmente, expele os detritos da natureza apreendida, compreendida e subjugada: evacua instrumentos. É neste sentido, um tanto repulsivo, que podemos afirmar que o progresso da civilização humaniza a natureza. A gula humana transforma a natureza progressivamente no excremento chamado "parque industrial". Mas a gula não pára neste ponto. Volta-se contra o próprio parque industrial para devorá-lo. O processo é demasiadamente conhecido e demasiadamente nojento para necessitar de uma análise neste artigo.

Não é somente a natureza que a gula humana devora. Devora ainda, por exemplo, a sociedade humana. Apreende-a, compreende-a, subjuga-a e a evacua em forma de instituições. Outro exemplo, mais horrível, é a gula humana devorando a alma humana. Apreende-a, compreende-a, subjuga-a e a evacua em forma de testes de Rorschach e IQ. Os exemplos podem ser multiplicados "ad nauseam". São, felizmente, desnecessários para o propósito deste artigo. A fisiologia da gula já se tornou, espero, evidente. A gula humana devora primeiro aquilo que lhe é dado, e depois, insaciável, aquilo que evacuou. A gula é um pecado. É uma perversão da fome. Como distinguir, portanto, entre fome e gula? Sugiro a seguinte distinção: a fome é um princípio (ou um dos princípios) pelo qual o homem se integra na engrenagem da vida. A gula é a perversão desse princípio, porque perverte o sentido da fome. Em vez de integrar o homem na engrenagem da vida, aliena o homem da vida. A diferença entre fome e gula é uma diferença de direção, de sentido, de significado. Tendo definido a gula desta maneira, estamos tentando, "prima face", a identificá-la com civilização "tout court". Mas essa identificação seria um erro. Ela se justifica somente no caso da nossa civilização ocidental. Existem (ou existiam) civilizações diametralmente opostas à gula, por exemplo, a chinesa e a indiana. Não estou dando essas civilizações como exemplos a seguir, mas como exemplos de alternativas existentes, embora talvez superadas. A gula não é a única maneira do homem realizar-se como homem, nem é a única maneira do homem superar a engrenagem da vida.

Mas porque deveríamos considerar uma alternativa à nossa gula? Não podemos contentar-nos com ela, não podemos glorificá-la, como fazem todos os progressistas "liberais" e "socialistas"? A resposta é simples: não podemos contentar-nos com a gula, não somente em virtude de razões éticas (sendo a gula um pecado) e razões estéticas (sendo a gula repulsiva). Estas razões podem ser consideradas produto de uma "pruderie" superada. Não podemos contentar-nos com a gula porque ela nos conduz à destruição de nós mesmos. Esta razão nos impele rumo a uma "filosofia da gula". Ei-la em esboço:

A gula é uma fome pervertida. Ela afasta o homem da engrenagem da vida, esvazia a sua "niche" dentro da hierarquia da vida. O homem não serve mais de alimento ao urso, ao lobo ou ao leão das cavernas, nem servirá, dentro em breve, de alimento aos protozoários e ao vírus. Mas a hierarquia da vida se vinga. Cria novas "niches" e reintegra, sub-repticiamente, o homem em sua engrenagem. Doravante o homem servirá de alimento aos seus próprios excrementos. Ele será devorado por seus instrumentos, suas instituições, suas doutrinas e seus testes. Os dentes, as garras e as trombas desses monstros já estão se aprontando para triturá-lo, rasgá-lo e sugá-lo. Os monstros já erguem as suas cabeças nos países "desenvolvidos". O fim da fome humana (que ainda persiste nos países "subdesenvolvidos") é o começo da fome dos monstros. Com efeito, a gula é uma ilusão, e os sábios orientais tinham razão ao afirmá-lo. A superação da engrenagem da vida pela gula é ilusória. O homem continua integrado na economia da realidade, uma economia "de todo diferente" da sua. É a economia da justiça poética (para não dizer justiça divina). A sua "niche" está fixada. Devora tudo "abaixo" dele, e é devorado por tudo "acima" dele, como qualquer outro animal da terra. A gula faz com que "tudo debaixo dele" seja equivalente a "tudo conhecível". Mas a gula faz também com que "tudo acima dele" inclua os seus próprios instrumentos. A gula não adianta. Não é uma maneira autêntica de superar a engrenagem da vida. Esta é a razão porque devemos procurar outra alternativa.

Urge, portanto, uma "filosofia da gula". Urge uma apreciação ética, estética e principalmente existencial da gula. Urge um reexame da angústia e do nojo existencial, estes característicos da nossa época, sob o signo da gula. A própria consideração superficial da gula, tal como foi ensaiada neste artigo, já facilita, como espero, a provocação de um novo estado de ânimo: um estado de admiração ante a implacável economia "de todo diferente" da nossa, e um estado de prontidão para uma modificação radical do nosso conceito "homem". Um estado de ânimo que pode ser descrito pelo termo "humildade".

Publicado originalmente em "O Estado de São Paulo", Suplemento Literário 7/12/63

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