Vez ou outra aparecem na imprensa mundial, (e brasileira), artigos que questionam a lealdade dos judeus aos vários países nos quais vivem, dado o engajamento de muitos deles no Estado judeu. E outros artigos, semelhantes, questionam o direito do governo israelita em emitir opiniões quanto ao comportamento político-social dos judeus que vivem espalhados no mundo. Tais artigos exprimem, por vezes, séria preocupação por parte dos não-judeus, mas inclusive também por parte dos próprios judeus. A discussão franca e, se for possível, isenta de paixão, pode contribuir para elucidar o problema.
O problema tem raízes históricas de várias profundidades. Uma é esta: os judeus formavam, no contexto feudal ocidental, muito mais classe social que religião ou povo. Cabiam-lhes determinados deveres e direitos, e seu campo de ação era rigorosamente delimitado pela estrutura da sociedade. As várias revoluções burguesas do século 18, as quais culminaram na Revolução francesa, aboliram a sociedade feudal e emanciparam os judeus, (como emanciparam os servos). Os servos foram absorvidos pela nova sociedade, sem terem sido assimilados. Foram transformados em proletariado. Mas com os judeus não aconteceu coisa semelhante, porque a sua função feudal sempre tinha tido semelhança com a função da burguesia. Os judeus emancipados se transformaram, pois, em concorrentes da burguesia vitoriosa. Passaram a participar ativamente dos avanços da revolução industrial em todos os seus aspectos econômicos, sociais e culturais, inclusive da contestação a tais avanços. Mas embora seu papel em tais acontecimentos tenha sido muitas vezes de destaque, nunca foram totalmente assimilados pela burguesia. A explicação de tal fracasso pode ser exposta dialeticamente da seguinte maneira:
A simulação é processo no curso do qual o assimilador procura absorver o máximo das características do ambiente, e o ambiente procura absorver o máximo das características dos assimiladores. Exige, pois, para ser coroada de êxito, mutua abertura. O século 19, palco da tentativa assimilatória judia, não favorecia tal abertura. A burguesia se fechava parcialmente, por sentir concorrência judia, e ideologizava tal fechamento por anti-semitismo nacionalista e racista, inteiramente diferente ao anti-semitismo feudal eclesiástico e ritualista. E os judeus emancipados reagiam a tal fechamento ideologicamente, criando seu próprio nacionalismo, o sionismo. Entre tais ideologias, que encobriam, ambas, a situação real, se abriu um abismo que culminou na catástrofe nazista e na fundação do Estado judeu.
As ideologias continuam a confundir a cena. Mas a ênfase da confusão transferiu-se para o outro lado. Se, até os meados deste século, foi o anti-semitismo que dificultava a assimilação, muito mais do que qualquer reação judia; na segunda metade do século é o sionismo que dificulta a assimilação mais que o anti-semitismo - podemos observar, aliás, um paralelo de tal curiosa transferência de ênfase no problema da assimilação do negro pela sociedade americana.
As duas ideologias, anti-semitismo e sionismo, encobrem a realidade fundamentalmente no sentido de esconderem o fato de ser a assimilação desejável. É desejável por parte dos judeus, porque acabaria com a trágica alienação que os aflige. E é desejável por parte dos não-judeus, porque eliminaria um ponto de atrito e enriqueceria o ambiente. A ideologia sionista encobre isto, afirmando que existem "valores" judeus a serem preservados, como se tais valores não estivessem guardados e salvaguardados há muito no conjunto da cultura do Ocidente. E a ideologia anti-semita encobre isto, afirmando que é necessário defender a "pureza" da cultura, (ou "raça"), como se cultura, (e "raça"), não estivesse há muito impregnada pelo judaísmo, e como se "pureza" fosse desejável. Assim colaboram as duas ideologias dialeticamente e tragicamente, especialmente do ponto de vista judeu.
É difícil romper ideologias. A primeira dificuldade é admitir que anti-semitas e sionistas, aparentemente tão opostos, colaboram na realidade, no sentido de evitar a assimilação dos judeus pelo ambiente. A segunda dificuldade é a dos judeus, já que o Estado judeu é agora um fato. A terceira dificuldade é a dos não-judeus em admitir que o Estado judeu é em grande parte resultado do anti-semitismo. E há outras dificuldades. Mas podem e devem ser superadas, como devem ser superadas todas as dificuldades que barram o caminho em direção da superação de todas as ideologias.
A superação de ideologias exige mentalidade madura. Não supressão da paixão, por certo, mas submissão da paixão ao controle do intelecto. Há sintomas que tal maturidade mental é atualmente possível para uma elite decisiva. Elite judia e elite não judia. Que forme frente comum contra a frente ideológica "anti-semitismo-sionismo" E tal frente é possível muito mais em países imigratórios que em países do Velho mundo. É perfeitamente possível que se esboce atualmente em terras americanas uma "solução definitiva" do problema judeu, em oposição ao anti-semitismo e ao sionismo, e em sentido exatamente contrário ao que tal expressão terrível tem para os nazistas. Os acontecimentos, inclusive em Israel, devem ser lidos com tal possibilidade em mente.
Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 12/03/1972
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